sábado, 16 de outubro de 2010

Incomodador Fascínio

Adaílton: A partir de agora, futuro assassino de duas pessoas.

Eu: Sujeito que cai de paraquedas no campo minado de uma mente aleatória.

Outros: São outros, só outros. Mas eles mesmos.

Inocência: Fenômeno relativo e suscetível a fatores desconexos.


Bom proveito!

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“Não sei por que você se foi, quantas saudades eu senti, e de tristeza vou viver, e aquele adeus, não pude dar...”. Era exatamente essa a música que saía do fundo daquele copo de cerveja quente, naquela noite de verão atipicamente fria de um bar qualquer, onde gordura no copo é o menor dos males sanitários. Já tinha perdido as contas de quantos copos aquele sujeito havia bebido. Aqueles olhos de breu marejados me causavam alguma coisa que eu não sei muito bem explicar. Vou utilizar a palavra ‘incômodo’. Eu bebia vodka, mas os efeitos do meu copo cheio – não importa quantos fossem – não se comparavam nem um pouco à ação daquela simples cerveja sobre aquele moço. A cena era fascinante e incômoda – não sei por que penso tanto –, o título já me diria. Era exatamente isso. Estava imerso em torpor daquele fascínio incomodador.
            Permaneci com ele nos versos da canção durante alguns minutos, fitando a certa distância aquela cena ligeiramente inconveiente. A banda era meio desafinada, mas, para quem não estava a fim de pagar o couvert artístico, o som parecia excelente. Em certo momento ele se levantou para ir ao banheiro e passou por minha mesa e, trôpego, apoiou-se na cadeira ao meu lado, desequilibrou-se, caiu e vomitou. Perguntei se estava tudo bem. Ele vestiu um resto qualquer de dignidade perdido naquela imundície, levantou-se e continuou a saga ao sanitário. Quando o homem voltava, não me contive e perguntei se poderia fazer-lhe companhia. Ouvi um “não, obrigado” grave, saído meio baqueado, e voltei para meu lugar, esperando mais uma dose.
            Um tempo depois, chegou minha companheira Marieta – uma das mais bonitas do bairro. Eu estava apaixonado e era a primeira vez que saíamos. Ela sentou-se ao meu lado, me deu um beijo no rosto e pediu o cardápio. Depois de um minuto de silêncio à mesa, olhou em minha direção e perguntou: “Que cara é essa?”. Foi o momento em que percebi o quanto incomodado estava com a situação criada, provavelmente por mim mesmo. Já fazia uns dois meses que eu insistia em sair com a Marieta e, quando consigo, não era capaz de ceder nem metade da devida atenção ao meu objeto de desejo. Expliquei então a ela sobre o sujeito da mesa próxima e ela não deu muita bola: “Loucura da sua mente mirabolante de escritor menestrel”, respondeu irônica.
            Após meia hora de nulidade verbal, Marieta parecia impaciente e simplesmente me disse: “Quer saber de uma coisa, eu nem sei o motivo de eu ter vindo aqui aguentar mau-humor de um fodido como você. Ou você conversa direito, ou tchau!”. Só consegui abrir a boca e dizer “tchau”. Ela levantou-se e partiu. Mas eu estava incomodado e, agora, deprimido demais para falar qualquer outra coisa. Chegava mais uma cerveja na outra mesa. A banda já cantava melhor. O álcool melhora as coisas. Mais uma dose, por favor. O mundo é mais divertido quando gira.

Desabafo
            “Meu amigo, me desculpe. Mas queira você ou não, é aqui que eu vou ficar. Quem paga a conta dessa bosta hoje sou eu! Solidão sai pra lá, que aqui não é o seu lugar!”. A rima acusava meu estado ébrio, e as palavras refletiam exatamente meu espírito determinado quando sentei na cadeira de frente para aquele protótipo deplorável. Encarei-o e disse que podia tratar de falar logo o que estava acontecendo porque se não nem ele, nem eu, curtiríamos nossa bebedeira direito. Acho que fui muito rude, ou então meu novo amigo era sensível em excesso. Apoiou a cabeça na mesa, e com a boca meio de lado, meio torta, ele começou a balbuciar alguma coisa que, apesar do agitado som da banda, eu cheguei mais perto e consegui entender.
-        Eu não precisava de ninguém comigo hoje, mas obrigado por ter vindo. A ideia de morrer sozinho me apavorava. Eu não bebo, mas hoje precisava fugir de mim mesmo, pois o suicídio é coisa vergonhosa. Matei minha mulher há meia hora. Eu não sou daqui, vim apenas atrás dela depois que ela fugiu com meu melhor amigo. Não se importe comigo, porque sei para onde vou. Gente que comete pecados iguais aos meus e dela se encontra no mesmo lugar. Lá eu vou poder reencontrá-la e, quem sabe, reconquistar o amor que não cultivei muito bem na Terra. Meu hálito é ruim em virtude do veneno que tomei, de ação lenta, que é pra dar tempo de me embriagar. Afinal quando tá bêbado a gente não tem vergonha de fazer coisa feia.
            Logo, estava morto, e era Adaílton. Tinha nome, o tal homem. O garçom me contou toda a história depois. Adaílton era sujeito sozinho na vida, só tinha a esposa. O funcionário do bar soube da história através da própria defunta. Veja só que insólito: era ele, o garçom, o tal amante da mulher e melhor amigo de Adaílton. Serviu as últimas bebidas de graça atendendo à última rogatória de um desertor da vida. Ainda teve tempo de escutar a frase derradeira que veio antes do último suspiro de vida do amigo, quando correu à mesa depois de ouvir o baque da cabeça que despencou: “Você é meu amigo, e amigo a gente escolhe para amar, ainda que erremos na escolha. Eu te amo. Até breve”.
            Conheci um sujeito especial naquela noite. E hoje tenho alguma convicção de que o Adaílton conseguiu o que queria, porque sonho com ele. E ele sorri um sorriso que eu não poderia inventar: eu nunca o vi sorrindo em vida. Era sorriso mesmo, de dentes arreganhados, de dever cumprido, recheado de espírito puro e sincero. Até hoje eu volto àquele bar para ouvir aquela banda desafinada que depois fica boa e sempre me emociono quando ouço o “Não sei porque você se foi...”. A cada encontro, tudo está do mesmo jeito. Joaquim, o garçom, ainda trabalha por lá e o repertório não mudou uma palavra. 



Autor: Jorge Pedrosa



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2 comentários:

  1. Vc tem uma mente perversa mas brilhante. Onde vc acha esses nomes tão feios?

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  2. tem q ser vc brilhante como nunca, vc vai lonje adorei show bjs.

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