quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Azares

Uma pitada de humor é o toque final de tudo o que é bom. Apresentando mais um sócio da Adega: Felipe Gramelisch (avatarizado em @felipegramelich)

E desejos de melhores dias ao querido "Jonas".

Apreciem!

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Você conhece um cara azarado? Aposto que não, porque eu sei que você não conhece o Jonas que eu conheço. O Jonas, sim, era um cara azarado. Uns poucos dias de convívio com ele já eram mais do que necessários para perceber que o que eu falo é a verdade. Outro dia ele voltava manco do serviço porque tinha dado uma canelada forte com a perna esquerda na gaveta da mesa do escritório, o que produziu quase que instantaneamente um enorme calombo roxo, o desequilíbrio do baque causou um esbarrão numa xícara de café quente que caiu na pasta de documentos contábeis, manchando algumas folhas. Mas não era só essa canelada que caracterizava o azar do azarado. Na semana passada torceu o pé na escada de incêndio do escritório tentando chegar mais rápido ao trabalho. Jonas tomou pavor de elevador depois de passar uma noite inteira preso dentro de um.

E dois dias depois, em função do pé torcido, uma pequena chuva foi suficiente para meu amigo avariado escorregar na calçada e chegar ao escritório todo molhado e com as costas sujas. O pessoal que trabalhava com o Jonas é o público mais felizardo nessa história toda, porque todos os duzentos e poucos funcionários da empresa só têm alguma coisa pra fazer todos os dias porque as “trapalhadas do Jonas”, como falavam, viraram motivos para animados papos na hora do expediente. O Jonas só era menos azarado porque em casa ninguém achava que ele era azarado. E o momento de sorte do Jonas se deve mais especificamente ao João Astolfo, o irmão, que era o verdadeiro mestre azarento.

Faz uns dois anos que o João jogou no bicho que se tornou uma lenda, e isso serve tanto pro João quanto praquele sorteio do jogo. O prêmio nunca passara dos 200 mil cruzados, mas aquele jogo valia 400 mil. E o João, acreditem ou não, ganhou! Deve ter sido a primeira vez na história que alguém acertava todas as dezenas do urso! Quatrocentos mil era tanto dinheiro para ele que ele demoraria três anos com a barraquinha da feira no bairro até ver uma dinheirama dessas. Mas ganhou. E logo depois viu que perdeu, porque o bilhete sumiu, mas ao contrário dessas histórias mentirosas ele nunca mais achou. “Que azar”, foi o que todos falaram na época, e é o que todos suspiram até hoje quando o assunto é pauta nas prosas da cidadezinha pacata. Mas o João ainda gosta de tudo quanto é bicho, menos urso, porque foi o número 23 que jogou “zica” no João.

E ele também não comemorava mais aniversário, pois o 23 era o infeliz número da data de nascimento. De vez em quando ainda se ouve um engraçadinho peruando: “Ele devia jogar no burro da próxima vez”. Nem é preciso falar que João nunca mais jogou. Enquanto isso, na mercearia do Badivino, Jonas comprava seu cigarro de palha, às vezes derrubava alguma coisa na mercearia, sempre sem querer, principalmente com o braço direito que era o menos habilidoso. Jonas era canhoto, o único da redondeza. Mais à noite, Jonas pega o bondinho, para dois pontos acima e caminha em direção ao boteco do Manel, quando passa em frente à mesinha de jogo do bicho.

- Jonas! – grita Jorginho – Vamos invadir o nicho e jogar no bicho? – Era o jargão do Jorginho.

Jonas conhecia Jorginho, o jogo do bicho e, principalmente, sua sina de palhaço de rodeio. Sabia que nunca ganharia. Jorginho até tentou argumentar falando da bolada do irmão João Astolfo, mas não tinha jeito. “Gato escaldado não põe a mão em cumbuca”, esquivou-se o Jonas, mas Jorginho arriscou:

- Fala aí seu número da sorte!
- Não tenho.
- Então fala aí o dia do seu aniversário, pô.
- 22

Jorginho apostou e Jonas, o escaldado, não. Duas horas depois: 85, 86, 87, 88 – Tigre na cabeça!

No outro dia, Jonas perdeu duas oportunidades de ser promovido no escritório de contabilidade em que trabalhava. Tudo porque pediram a indicação dele pra um cargo de supervisão. Ele poderia ter indicado a si mesmo, mas depois de pensar um tanto balançou os ombros e disse um “não sei”. Isso por duas vezes. Va verdade verdadeira, o Jonas não era azarado. Ele era sonso... e um canhoto desastrado. 



Autor: Felipe Gramelisch






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segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Crônica do primeiro aniversário

Nosso novo sócio, Vitor Taveira, nos envia uma crônica de sua autoria. Acomodem-se e aproveitem!

Saúde!

"Senhor zelador... te envio minha primeira cronica, de 2003.
o meu blog é: http://www.gritoliterario.blogspot.com/  Entre ser bater!"


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A festa de aniversário de um ano de idade é, sem dúvidas, um dos melhores retratos da imbecilidade humana. Apesar de serem os filhos que fazem anos, parece que os pais organizam a solenidade para eles mesmos. É um momento inesquecível...para os pais, não para os filhos (ou alguém se lembra de como foi a sua?). Enquanto os marmanjos bebem cerveja e jogam conversa fora, o pimpolho não faz a menor ideia de que, desde que foi concebido, o planeta Terra já realizou uma órbita completa ao redor do sol.


Não bastasse o fato de não saber o que está acontecendo, a pobre criança (que, por sinal, é a homenageada do dia) é proibida de desfrutar do que há de melhor no recinto. Ao invés de saborear o refrigerante geladinho, os salgadinhos apetitosos e os docinhos que dão água na boca, o aniversariante tem que tomar leite ou comer a famosa “papinha” que sua mãe lhe dá. Mas o pior ainda está por vir! O nenê, morrendo de sono e incomodado por aquele desconfortável chapéuzinho de festa, é obrigado a ficar horas tirando fotos com todos os convidados, enquanto os adultos bobões regressam à infância fazendo caretas ridículas para tentar pôr um sorriso no rosto do desanimado bebê.

O atentado ao livre-arbítrio infantil, entretanto, não para por aí. Há sempre aquele cara que dá uma camisa do Flamengo, uma bola do Corinthians, um babador do Cruzeiro ou um boné do Grêmio de presente ao menino. É uma clara tentativa de influenciar na escolha do pequerrucho antes mesmo dele saber e entender o que é futebol. 

Bom, eu já tive meu primeiro aniversário e, sinceramente, não faço a menor idéia do que ocorreu no dia em que deixei de ter 364 dias para ter...1 ano (Oh! Que grande transição). Mas tenho certeza que farei belas festas quando meus filhos atingirem essa idade. Não por eles, mas por mim; afinal, eu também sou humano. E ser humano é, antes de tudo, ser egoísta e privilegiar as suas vontades pessoais em detrimento da vontade dos que têm menos poder que você.

Aliás, com o estímulo do individualismo e do consumismo pelo sistema capitalista, a tendência é queas celebrações do primeiro ano de vida sejam cada vez mais constantes e luxuosas, repletas de canapês, croissants e champagnes de primeira qualidade. Portanto, se você fizer uma para seu filho, ou melhor, para você mesmo não se esqueça de me chamar, viu?

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Um Outro Amor Bandido

Dia 22 de setembro foi comemorado o dia do amante. Que tal falar de amor por um outro ângulo.
No ar, mais um aroma exclusivo da Adega.
Saúde!
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Recheio de amor gostoso é lascívia. Mas não a obscena; é sensual, voluptuoso. Com direito a beijos de tirar o fôlego e amassos de colocar inveja em qualquer lista dos melhores do século. Nada de coisa cinematográfica, de estilismo e estética. Amor gostoso tem aperto, tem paixão, carinho, pimenta e açúcar. E tudo mais que qualquer uma das partes envolvidas precisarem para sorrir a cada manhã, e ainda ter vontade de falar todos os dias o famigerado e manhoso “Ah, desliga você primeiro!”.
            Há quem afirme que isso é paixão, e obviamente confirmo a sentença: é sim, está inclusa no pacote! Ausência de paixão causa apatia, deprime e não dá vontade alguma de pegar no telefone, que dirá falar qualquer palavrinha miada. Amor gostoso tem de parecer sanduíche caprichado aos olhos de qualquer ermitão faminto. Desejo! Tem de provocar o desejo, ser apetitoso.
            Comer o sanduíche sacia a fome, mas ainda bem que ela volta para podermos experimentar todos os sabores, os bons e os ruins, o adocicado e o salubre, o magenta e o anil. Assim como, quando há amor, a vontade de ver o outro, de dar carinho e receber atenção, de abraçar, beijar e amassar, discutir e reatar volta à cena sem que a gente perceba. Amor é como a fome: não pode se ausentar, se não a vida vira um carrossel, que é até bonitinho, mas sempre gira para o mesmo lado e não arrepia coluna de ninguém.
            22 de setembro é o dia do amante, de quem ama, dos profissionais na arte de fazer apaixonar e de apaixonarem-se. Daqueles que não têm vergonha de serem felizes e fazem questão de se tornarem mais bobos, mais chatos e insuportavelmente mais melosos só para ver um sorriso, um olhar diferente e se encher de uma inquietação alegre quando percebe que o esforço valeu a pena.
            Não comemoremos a data só no dia que destinaram a ela. Que setembro seja o mês dos amantes e que todo ano seja do amor. Lembra da fome? O amor é igual mesmo; quanto mais recheio, melhor. Amem gordurosamente hoje, amanhã e sempre. Para que o sol possa nascer mais amarelo e o luar possa realçar as silhuetas docemente lascivas. Feliz ano do Amante!



Autor: Jorge Pedrosa, o zelador.


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segunda-feira, 20 de setembro de 2010

em Latim


Aula metódica
Na cabeça, ideias descompassadas
Nas linhas do caderno em branco, vejo seu nome.
Nos rostos das pessoas ao redor, leio seu rosto.
Dos meus dedos, saem palavras que formam poesias com pensamentos óbvios.
Obviedade que só se descobre quando estamos assim.
Com o peito vazio.
Caroline Drumond
(março/2009)


Caroline Drumond é sócia da adega e pode ser encontrada em http://www.carolinedrumond.blogspot.com/


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quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Holocausto?

Recebi este e-mail de Marcos Wekler, um sócio e frequentador assíduo da Adega. Ficam os agradecimentos pelo envio do material. A mensagem de carinho que acompanha a fotografia está copiada na íntegra. Interessantíssima!

Saúde!

Zelador,
Muito bom esse Blog, com certeza vai fazer sucesso.
O que sei por curiosidade é fotografar, eternizar enquanto durar, aqueles momentos e as cores. Não sou bom com as letras mas como sou ousado me arrisco. Gosto! Me emociono e até choro. Depois de um tempo me pergunto como pude escrever isso, onde eu estava? Insano! Só o suficiente.

Essa foto está no meu blog
http://www.weklerelementos.blogspot.com/






terça-feira, 14 de setembro de 2010

Edervais

Aproveitando o período do horário eleitoral, segue o primeiro sabor exclusivo da Adega. Apreciem com moderação.

Saúde!
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TV de 52 polegadas, tecnologia LED, coisa fina. A melhor do mercado, com imagem em alta resolução, sinal de alta definição, Blu-ray acoplado, som estéreo, um autêntico cinema em casa. É tudo de mais pra ver esse tal de horário eleitoral aí. Mas ainda mantenho minha palavra, com o horário ou sem horário: se ela servisse comida, eu juro que casava, mas isso fica pra depois, vamos ao que interessa. Costumo manter uma observação atenta a todos os tipos de mensagens que me são apresentadas, mas não entendo por completo como funcionam as coisas pra esse pessoal, ou talvez eu nem entenda nada, mas penso que entendo alguma coisa, mais ou menos igual ao Ederval, que é meio confuso, mas no final dá algum resultado. Fico olhando as promessas, as caretas, a seriedade, e cada figura que vai aparecendo... Será que é tudo sério mesmo? Eu não apostaria a sola de um sapato, nem pro sim, nem pro não. Isso porque todo mundo pede pra entrar na casa dos outros e pedir isso, pedir aquilo outro na maior educação, fala que é amigo, promete e não cumpre, mas isso todo mundo sabe. Aí depois vem a propaganda e diz que quem manda é o eleitor, que ele pode escolher e aquele blá blá blá todo que quase se torna uma analise social-antropológica das relações de poder através dos tempos dentro da cabeça de um condenado qualquer, mas dos meus. Hahaha, essa sequência de candidatos foi ótima, adoro show de humor! Foi mal, me desliguei, voltando ao assunto, pelo menos no meu círculo de amigos, as discussões caminham por aí, nessa coisa mais intelectualizada. É que a gente percebe as coisas como elas realmente são, ou seja, a gente faz o básico, pensa!

Até acho que muita coisa é coisa que vai surgindo na minha cabeça, talvez fruto da velhice, ou do ócio mesmo. Quando encontro uns amigos ao acaso assim, entramos em discussões fervorosas porque ninguém quer falar de comida, brincadeira, filhos, casa, essas coisas todas do nosso mais do mesmo cotidiano. Agora tenta acompanhar minha linha de raciocínio: Imagina se meu melhor amigo Ederval vai a um restaurante daqueles ali da esquina e pede um Prato Feito. Aí no lugar do arroz, vem berinjela, no lugar da berinjela vem vagem e no lugar da batata vem abobora com carne seca. O que ele ia fazer? Rodar a baiana e trocar de prato. Por mais que fosse bizarro e engraçado o Ederval de baiana, estou certo que ele estaria coberto de razão. Mas aposto uma língua mais a sola de qualquer sapato que se fosse num restaurante chique desses cheio de gueri-gueri a história ia ser outra. É um fato que seria a parte versa do vice.

Opa, olha esse aí, parece que tá querendo bater em alguém. Coitado, ainda não aprendeu a tênue diferença entre o respeito, a admiração e o medo... Ah, se um dia acontecesse de eu poder ver o Ederval e alguns amigos dele, ou até uns primos tendo que debater uns assuntos pré-selecionados por um primo meu. Ia ser como um passeio ao zoológico: parece que é legal, mas na verdade o que você vê é um amontoado de bichos perdidos, sem o que fazer olhando pro nada esperando a hora da comida. Exceto o leão, que ganha massagem todos os dias só porque tem juba. Eu sei que estou devaneando um pouco, mas o ponto a que quero chegar é que, como pode gente que nem o Ederval decidir alguma coisa sobre o futuro de alguma coisa, porque se nem votar eles conseguem, imagina pensar, decidir... É a mão dele que arruma a cama dele, ó céus! No ano de 2010 teremos 7% a mais de votantes na eleição, com 135,8 milhões de brasileiros aptos a votar, ou seja, nunca pôde-se esperar tanta trapalhada desde os tempos dos trepidantes trapalhões.

A antítese do amor
Ao mesmo tempo que me divirto com isso tudo, sinto uma enorme pena desse povo tão alegre e tão causador de sorrisos e que se acha tão avançado e que... Que pena que já ta acabando, porque a novela vai começar e o Ederval me chama já já, e só vê novela comigo. Talvez ainda dê tempo de contar uma coisa: sabe com o que eu fico mais pasmo? Quando eu fico em pé, tem gente que olha pra mim sorrindo e fala, “Ah, mas que bonitinho, parece até gente!”. Antes eu mordia uns calcanhares, mas hoje nem ligo mais. Eu sou um Pincher, pô, cachorro de raça tem que ser respeitado! Gente, gente, vê se pode...

- Rex, fiu fiu, Rex, vem, Rex!
Fiquem sabendo que eu amo os seres humanos, mas fazer parte do mundo deles seria de mais pra mim, ou de menos, ainda estou me decidindo quanto a isso. Certo é que eu prefiro mesmo o meu mundo animal. É mais seguro, menos complicado e não precisa de tanta coisa numa TV, só uns galetinhos circulando lá dentro já me bastariam. Agora vou cuidar do meu bicho, que pode não ter lá tanta inteligência e perspicácia, mas gosta de mim o mesmo tanto que eu gosto dele e ainda limpa cocô que é uma beleza!


Autor: Jorge Pedrosa

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segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Conto de Verão nº2: Bandeira Branca

Para inaugurar nosso Blog nada melhor que um conto do Mestre, que tanto sofre quando um ou outro escreve qualquer coisa e atribui o texto ao seu nome. Eis um texto de Luis Fernando Veríssimo, que li no livro "Os 100 melhores contos brasileiros do século", e é um dos melhores que já pude degustar.

Saudações e aproveitem!
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Ele: tirolês. Ela: odalisca; Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.


Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.

Só no terceiro Carnaval se falaram.

- Como é teu nome?

- Janice. E o teu?

- Píndaro.

- O quê?!

- Píndaro.

- Que nome!

Ele de legionário romano, ela de índia americana.

Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.

- Ah.

Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse - Até o Carnaval que vem - e saiu correndo.

No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:

- Me dá alguma coisa.

- O quê?

- Qualquer coisa.

- O leque.

O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.





***





No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera?

- Você vomitou a alma - disse a mãe.

Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.



Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube - e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.

- Sei lá. Bávara tropical - disse ela, rindo.

Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.

- E aquela bailarina espanhola?

- Nem me fala. E o toureiro?

- Aposentado.

A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse -Píndaro?! - e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi - pelo menos o meu tirolês era autêntico - e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo - não vale, você cresceu mais do que eu - e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.





***





Encontraram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse - quase não reconheci você sem fantasias -. Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe dissera fora - preciso te dizer uma coisa -, e ela dissera - no Carnaval que vem, no Carnaval que vem - e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara -

- O que você ia me dizer, no outro Carnaval? - perguntou ela.

- Esqueci - mentiu ele.

Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil - E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu...