segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Reflexões

Se o perigo é iminente, a avaliação é latente.

A Adega reflete.

Saúde!

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Já caía a noite e eu me arrumava para sair. Iria para um happy hour com uns amigos, beber cerveja, falar de futebol e mulher. Ir embora embriagado. Porque é isso que todo sujeito de meia-idade e solteiro, como eu, faz da vida às sextas-feiras trajando um bermudão amarelo super descolado. Já estava perfumado e ia colocar a camisa, quando vi um estranho dentro do meu quarto. Pulei sobre a cama, rolei no chão e me escondi entre a mesa-de-cabeceira e a parede do banheiro. Coisa de filme, só vendo para acreditar! Nem eu acreditava em tanta elasticidade.  Era minha chance de não ser visto. E, além de tudo, eu estava seminu e era tímido.

Deu tempo de sacar o sujeito, e eu podia jurar que ele me viu por um segundo, pois tivemos um rápido contato visual. Mas sou muito rápido, e minha barriga torna meu rolamento mais dinâmico, por assim dizer. Estava intrigado com apenas mais uma coisa: depois que percebi a presença estranha, não ouvi mais qualquer passo ou ruído. O invasor da minha privacidade devia estar analisando o ambiente ou, se tivesse me visto mesmo, esperando que eu emergisse. Depois de uns dez minutos de tensão até que me distraí e comecei a me apegar aos detalhes daquela situação. Sou mais detalhista do que chinês fazendo jogo de dominó humano.

A começar por aquele olhar que me intrigou. Como não poderia ter-me visto, enxergava tão mal ou, pior, pior que eu? A física básica já explica: se meus olhos vêem seus olhos, os seus olhos enxergam os meus olhos. É fato, e científico... Bendita miopia! Eram olhos de jumento, híbridos na história, de misturas e misturas de raças, etnias ou, quiçá, de espécies. Verdadeiras janelas escancaradas que acusavam toda a miscigenação daquele gene imundo, invasor. Um nariz adunco numa pele branca. Design europeu com traços asiáticos. E o cabelo não escondia qualquer raiz africana que pudesse ser guardada ali. Não andou, não pegou nada, nem um ruído, nem um movimento, não podia ser mau. Talvez fosse a primeira vez que invadira uma casa e lutava agora contra seu medo de ser pego, porque não podia mais voltar atrás.

Eu entendo isso, todo mundo entende isso. Os escrúpulos existem, assim como o bicho-papão, o velho-do-saco e toda a trupe da assombração. Mas em cada universo particular e paralelo recebem formas e nomes diferentes, e cada um lida como pode com seus malfeitores. E ali estava eu pensando sobre os caminhos que as coisas tomam. Estaria aquele homem ali por necessidade? Foi obrigado? Cumpria ordens? Alguém o obrigava a fazer algo que não queria ou só não precisava fazer?

Não vou mentir que pensei em muitas coisas, mas nada que valha a pena contar. Pensei na sociedade, na história, na democracia, no comunismo e até no nazismo! Na fome, no capitalismo e no socialismo. Pensei nas crianças, na educação, saúde e segurança. No contrato social! Caminhei pela psicologia, antropologia, filosofia e umas dez outras “ias” humanas. Viajei até o trio Sócrates-Platão-Aristóteles. Isso tudo fora o futebol e o sexo, que não saem da cabeça do brasileiro, como eu. São invenções desse bicho-homem, que cria coisas demais para confundir mentes normais, para torná-lo refém de suas próprias invenções e para enlouquecer a si mesmo. E coisas demais para mente de gente de menos como eu pensar.

Só não sei no que estava pensado quando resolvi tomar coragem. Acho que era só saco cheio mesmo. Fui dar uma espiadinha - sem trocadilhos com o reality show, por favor - e vi o homem. Era muito feio e ficava ali parado, agora me olhando fixamente. Sem medo e com um sorriso no canto da boca. Falou um “Otário!” e sorriu largamente. Bem que algo não me era estranho naquele primeiro contato visual. E eu tive a confirmação: era só o outro eu num espelho, bobo, espelho. É cada medo que a gente inventa que nunca sabe o que pode acontecer. Saravá! Amarelo não deve combinar comigo, logo depois da visão catastrófica, joguei meu bermudão fora.


Autor: Jorge Pedrosa


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2 comentários:

  1. Jorge, quando li o primeiro parágrafo achei que ia entrar numa daquelas hsitórias de Franz Kafka ! Bom trabalho

    beijos

    Cris Daher

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  2. Menino Jorge vc continua bombando com seus textos. Gostei muito. "Bemudão amarelo"não combina com ninguém, nem comigo que sou teen!

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